O meu Blog

O Blog "Verba Volant, Scripta Manent" foi criado no âmbito de um exercício académico. Desde então, e por forma a dar alguma continuidade à experiência iniciada na blogosfera, mantém o objectivo de partilhar alguns textos pessoais, bem como outros materiais literários do nosso interesse.

Todos os comentários, sugestões ou críticas serão sempre bem-vindos!

Porque as palavras faladas voam... e a palavra poética, tantas vezes, fala por si... e permanece... sempre!

sábado, 26 de outubro de 2013

De scripto [Latim - Sobre a escrita]

escrevo sem tela nem lápis
nas tépidas nuvens que me enleiam
embriagado na lucidez real
de alguém que conhece o tempo
e se resvala num espaço que não é seu


escrevo sem fim
sem pressa
acordado em sonho de viagem
desejo inspirado, tábua rasa
de razões impalpáveis
oprimidas, recalcadas
força de multidão entediada
em cortante e crua lâmina



escrevo de mim
a cores ou branco e preto
o que não conheço
âmago silêncio que brota
de uma asa quebrada
em pena contrita
escravidão que (se) sabe 
e cheira a liberdade
(Troyka Manuel)

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

[Cabe um homem na negra noite]

Cabe um homem na negra noite
confusa, trémula de luar?
Cabe um céu no tempo finito de acontecer?
Cabe um desejo no tempo em que partir
é chegar, é cair?

Cabe um homem?
Cabe um céu?
Cabe um desejo?

Cabe a vida e cabe o homem.
(Cabe a vida?)
Tudo cabe, como perder
é ganhar asas-de-tentar!
(Troyka Manuel)



sábado, 12 de outubro de 2013

"O que vemos, o que nos olha" (Título do Livro de Didi-Huberman)

Da persistência nasce a obra,
o entendimento, a olhar que nos olha.
Exactidão perscrutada, perfeição do ser quase
em instante de solidão que se arremessa
e se atira para o vácuo buraco olvidado.

On jette toujours un coup d’oeil.
À tout! À tous!

E espreitamos assim – sempre! –
o abismo, as rochas, o mar profundo,
o espelho côncavo que nos reflecte.
Fixam-se os olhares, intensifica-se a atenção
qual lugar para onde, projecção ilimitada
- espaço de reciprocidade infinda e inabalável-,
metamorfose do celeste númen
ao canto de uma estrada,
por entre roupas usadas e andrajosas.
O Caos, a vida repentina e estonteante
envolta de divinos véus e palavras.
Olhos vidrados de olhar!

Da persistência desponta a obra,
comunhão absoluta de desejos inesgotáveis.
De olhos postos em Outro-de-si,
quando olhar o Outro é perder-se de si. 
(Troyka Manuel)



quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Sendas de rumor

soltam-se rumores, trágicas comédias medíocres
de bem falar mal de tudo existir e acontecer
soltam-se gritos entre ameias de castelos esquecidos
e entre véus e teorias vão-se definindo as regras

gelo que derrete a sanguínea fúria do vulcão
doido embarrigado na vontade do fogo cuspir
soltam-se as bestas livres em carrossel parado
à espera de viv' alma  
que o sopre sustente movimente 
carrossel de fundo abismo lento 
como Zéfiro-Vento entre ninhos de Primavera

incendeiam-se rasgos de luz em clara noite longa
burburinhos em eco flamejante
e gastam-se as horas, o tempo, o escuro
vivendo de fingir ser
como almas penadas estrangeiras de si

numa senda que não é minha nem é tua
(Troyka Manuel)

sábado, 5 de outubro de 2013

[Éramos sangue em silêncio]

Éramos sangue em silêncio.
(Mudo sangue!)
Corria nas veias a densidade de sermos juntos,
a meia lua, o sol alto, a estrela cadente
- paridos de um coração qualquer,
hesitantes, acomodados, vingados.

Éramos a mesma água, o mesmo balde
numa terra de ninguém,
sem espinhos e sem traça.

Éramos fúria-tensão-espingarda
sem tiros nem mortes.
Somente mudos (Sempre mudos!),
calados-esquecidos,
desconhecidos de uma vaga-falsa esperança
que nos sorveu as mãos, o sangue e a vida.
(Troyka Manuel)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

"Lithos" (etim. Grega - "Pedra")

Da pequena pedra rude
se constrói um destino,
uma estátua, um edifício.
Retumba a crueza dos nortes 
empedrados,acastelados de sentir.
Noites sem vento,
erosão degradada em nada.
Rude pedra, enfim,
modelada de pequenos fins.

Estão sós as pedras do rio,
frias, líquidas,
à espera de um destino:
molde inefável da sua Potência
de Ser mais e mais.
Deserta-Ilha de recriar
e sempre se Transformar.

Pequena pedra de vir-a-ser...
(Troyka Manuel)

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O Pagem, Mário de Sá-Carneiro












Sozinho de brancura, eu vago --- Asa
De rendas que entre cardos só flutua...
--- Triste de Mim, que vim de Alma prà rua,
E nunca a poderei deixar em casa...

                      Mário de Sá-Carneiro


terça-feira, 1 de outubro de 2013

Mito de Sísifo

Relendo Miguel Torga, recordo Sísifo, personagem da mitologia antiga que desafiou a morte e os deuses, sendo por isso condenado a empurrar um enorme pedregulho, com as suas mãos, até ao cume de uma montanha. A cada vez que atingia o cume, a pedra rolava novamente até ao ponto de partida, tendo Sísifo de executar a mesma tarefa durante toda a eternidade. 
Ora, este Mito (repegado de forma interessantíssima por Camus em O Mito de Sísifo)  conduz-nos precisamente à ideia do "absurdo", à noção comezinha dos "esforços inúteis" da monotonia que, tantas vezes, nos toca na pele e tentamos repudiar. Há esforços e endereços inúteis, de facto, contudo já os latinos diziam: "Inutilia truncat" (cortar as coisas inúteis), acabar com as inutilidades. E quantas vezes temos o poder de interromper este trabalho sisifiano, encarar outros caminhos e possibilidades, criar e recriar aquilo que é rotineiro e absurdo, introduzindo a novidade, a surpresa, a superação!?
Nem tudo é necessariamente sisifiano e sem esperança. O que importa mesmo é "Recomeçar" sempre, desbravar novos trilhos, empurrar a pedra para outros cumes.
As paisagens que podemos contemplar de cumes diferentes esperam por nós e estão ao nosso alcance!  

Sísifo
Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga, Diário XIII