VOA, MARIA, VOA!
(Pequeno comentário - reflexão sobre a peça de teatro "António
e Maria" com Maria Rueff, no Teatro Meridional)
As palavras serão
redutoras para descrever “António e Maria". Além de redutoras, não sei bem
escolher aquelas que poderão iniciar esta pequena reflexão pós-espectáculo.
Algumas pessoas já
se riem comigo por andar com um bloquinho de notas quando vou ao teatro e
escrevo às escuras, entre uma fala e outra. É a forma de eternizar aquilo que
ouço e de criar um sentido que em mim fica, quando volto a ler aquelas palavras
todas tortas, mas ainda perceptíveis.
"Não me digam nada que até às 11 da
manhã tenho um humor de cão", "Não me digam nada, é que não me digam
nada", diz a mulher nos primeiros minutos, dentro de um sobretudo
cinzento-pesado, por cima de uma roupa de andar por casa, botas de montanha,
cabelo ainda não desgrenhado. Uma única mulher, um monólogo que dialoga com Outros:
um António com uma boca especial, uma mãe que grita ao telefone que até dá medo
de prosseguir o suicídio, um pai corno-austero, o tio que se roça na mãe, um
Sr. Biscaia que a ampara financeiramente, mas não sexualmente por frequentes
"desmaios" viris, uma mulher velha que exige ao marido que não lhe
morra no café ("Não morras agora,
porque estão a olhar para nós e é uma vergonha")...
Mas voltemos à
mulher grave, a qualquer um dos leitores de António Lobo Antunes, a qualquer
espectador que se sinta pesado na sua cadeira. Envolta na sua solidão de
memórias vivas e muitas vezes perturbadoras, inicia uma viagem interior aos
medos, ao abandono, ao desamor, à infância e aos pequenos sonhos que ousou
sonhar. Entre a quase loucura de uma mulher só e o desejo implícito de
encontrar um rumo, uma vida ou um porto de abrigo, a actriz conduz-nos
eximiamente numa reflexão íntima e intimista sobre religião ("Onde está Deus que não o vejo?",
"O nosso mal foi ter nascido na velhice de Deus", "Mas quem é
Deus que não está?"), sobre a solidão, sobre a família, sobre a
inexorabilidade do tempo ("Velhas
zangadas com o tempo, como eu", "Tantas rugas, Celina, tantas
rugas", "Que ridículo aborrecer-me com as rugas, com a velhice").
No fundo, é uma reflexão universal sobre a vida, as emoções, a condição humana
na sua plenitude ou no seu vazio, porque afinal "A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão". A mulher
solitária exibe cada caco desses pratos partidos e mostra-nos a fragilidade que
nos define, homens e mulheres; o limiar entre a sanidade e a loucura, entre a
estreiteza de quatro paredes onde podemos envelhecer "a mudar o canal e a ouvir crescer o pêlo da alcatifa" e
o leque de possibilidades que o devir nos pode trazer. É, aliás, com esta nota
de esperança que termina o espectáculo: "Alguma
coisa há-de acontecer até amanhã de manhã". Ou a simples e insistente repetição
textual da mulher que recorda a menina que foi: "Voa, Celina, voa!".
A bem da verdade, esta
mulher polifónica pode ser o António, pode ser a Maria, posso ser eu ou pode
ser qualquer um de nós, refractados a partir daquela mulher que se
desmultiplica nos diversos espelhos instalados no cenário.
Neste espectáculo,
Maria Rueff atinge um nível de perfeição tal que nos deixa estonteados,
rendidos à irrepreensibilidade dos seus gestos ou dos múltiplos tons da sua
voz. A sensação inicial é de leveza, todavia, conforme o espectáculo vai
decorrendo, o nosso peso vai-se engastando na cadeira (e sentimo-nos cada vez
mais e mais pesados) de tal forma que se torna quase insustentável estar ali. A
actriz impregna-se na pele e vai-nos beliscando, paulatinamente, até à
exaustão, até termos vontade de fechar os olhos e gritar: Pára de falar de mim,
da vizinha, da irmã ou da prima! Porque é que tens de dizer tudo o que pensamos
e não dizemos a toda a gente?
É o grito de um de
nós, o eco de dentro da solidão e do estigma, uma viagem psicológica ao espelho
da alma e a desconstrução do Homem, a partir desses fantasmas que se agigantam
na velhice e sulcam escrupulosamente vincos na expressão.
Usando uma metáfora
meio idiota, o espectáculo transmite-nos aquela sensação da "Bailarina"
(típico "carrocel" da Feira Popular lisbonense): acabamos a viagem
maldispostos de tantos solavancos e de tanto rodopiar, com a impressão de
vertigem eminente, a "cair para
dentro de nós", como diria Walter Hugo Mãe (O filho de mil homens). Exaustos da viagem e da procura incessante
da mulher (de nós!), mas intensos e completos no sentir.
"António e
Maria" é tão simplesmente um espectáculo irrepreensível, uma experiência
do sublime, tanto pela organização e adaptação dos textos de Lobo Antunes,
feitas por Rui Cardoso Martins, como pela encenação do Miguel Seabra, pela cenografia
aparentemente simples; mas também, claro está, pela brilhante-estonteante
interpretação de Maria Rueff que nos mostra que é uma actriz absolutamente completa,
um caleidoscópio com milhares de possibilidades, que não se resume àquele lado
cómico que todos nós conhecemos.
Um espectáculo que
vale a pena ver e sentir.
Um diálogo interior
que vale a pena desvelar e deixar falar.
Vale a pena
"espreitar para dentro da bota porque às vezes há coisas" (António Lobo
Antunes citado no flyer do espectáculo). E é bom quando espreitamos e ficamos
surpresos, atónitos, sem palavras, soterrados numa cadeira, apenas com os olhos
e com os ouvidos acordados. E há tantas surpresas dentro de um par de botas de
montanha…
Muitos parabéns,
Teatro Meridional!
Muitos parabéns,
Maria Rueff!
Manuel Pereira Vieira
(Troyka Manuel)
Publicado no Facebook: https://www.facebook.com/troika.manuel/posts/933265856761670
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